terça-feira, 24 de maio de 2011

Ergonomia no Brasil - Sobre Alain Wisner

Edição especial da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, publicada em 2004, feita em homenagem ao professor francês Alain Wisner (1923-2004).

Inteligência no Trabalho e Análise Ergonômica do Trabalho
As contribuições de Alain Wisner para o desenvolvimento da Ergonomia no Brasil

Por José Marçal Jackson Filho - Ergonomista (Dr.) e pesquisador FUNDACENTRO/SC.

Pensar na obra de A. Wisner remete-nos necessariamente à Análise Ergonômica do Trabalho (AET), remete-nos também à inseparabilidade entre a produção de conhecimentos sobre a realidade e a ação para transformá-la positivamente: compreender o trabalho para transformá-lo, eis o princípio fundador da AET.

Para homenagear o Professor A. Wisner por sua contribuição ao desenvolvimento da Ergonomia no Brasil, uma seleção de textos de estudos brasileiros, fundamentados na AET e apresentados no último Congresso da Associação Brasileira de Ergonomia, foi reunida neste número (109) e no seguinte (110) da RBSO. Antes de introduzi-los, faremos breve explanação sobre o papel de A. Wisner para o desenvolvimento da AET e da Ergonomia no Brasil.

1) Demanda social, trabalho real e inteligência do trabalho: alguns descritores da obra de A. Wisner

A. Wisner teve papel marcante na ruptura epistemológica fundamental para o surgimento da AET (Wisner, 1972). Recusou-se a aceitar, no início dos anos de 1970, o paradigma dominante na comunidade científica da época (importante até hoje), segundo o qual a pesquisa em Ergonomia deveria ser realizada em laboratório para estudar o comportamento e os limites do funcionamento do homem no “trabalho”. Embora fundamentais, tais conhecimentos não resistiam necessariamente à prova das situações reais de trabalho e não se aplicavam diretamente ao desenho dos equipamentos e sistemas.

Por outro lado, assumiu grande risco ao aceitar a demanda social, isto é, aquela proposta por alguns sindicatos para produzir conhecimento sobre o trabalho (Wisner, 1985). A pesquisa guiada para a resolução de problemas não era enquadrada dentro dos padrões de cientificidade no início dos anos de 1970.

Das pesquisas de campo, realizadas em diversas situações de trabalho, A. Wisner e seus colaboradores desenvolveram a metodologia da Análise Ergonômica do Trabalho. Nos seus mais de trinta anos de utilização, ela mostrou-se bastante eficaz para explicar as relações entre saúde, trabalho e desempenho (Wisner, 1987; Guerin et al., 2001).

A característica essencial da AET é ser destinada a “examinar a complexidade, sem colocar em prova um modelo escolhido a priori” (Wisner, 2004; p. 42). A AET é metodologia, isto é, modo de refletir e abordar a realidade do trabalho (e não receituário de métodos ou técnicas) cujo objeto é a compreensão do trabalho e de seus determinantes para, como diz Wisner (2004), “responder a uma questão precisa” e orientar-se para a “proposição de soluções operatórias” (p. 42). Algumas características da AET merecem ser destacadas: – A importância da etapa de análise da demanda, através da qual os ergonomistas constroem o problema a ser tratado, reformulando as questões colocadas por representantes da empresa e/ou dos trabalhadores e considerando os diferentes pontos de vista sobre o problema;

– O papel central da confrontação dos modelos do trabalho produzidos por engenheiros, organizadores e administradores e da descrição do trabalho real a partir das observações de campo;
– A atividade de trabalho não é influenciada apenas por fatores internos à empresa ou instituição, mas também por fatores externos ligados às condições econômicas, sociais, culturais e políticas;
– A necessidade de buscar o sentido da ação dos trabalhadores, que se torna possível graças à utilização rigorosa dos métodos de observação e das entrevistas de autoconfrontação (Wisner, 1995);
– O trabalho é socialmente determinado. Portanto, o redesenho das condições de trabalho deve se basear na ação sobre o conjunto de fatores determinantes; 
– A observação do trabalho implica em uma postura ética por parte dos ergonomistas, ou seja, no acordo dos trabalhadores sobre o estudo e na validação dos resultados com os envolvidos.

Wisner (1993) também teve papel fundamental na defesa da inteligência do trabalho, objeto das pesquisas do laboratório sob sua direção (já nos anos de 1980). A compreensão da inteligência no trabalho não se justifica, segundo ele, para se contrapor à “inteligência racionalmente acumulada” operacionalizada pela arte da engenharia. Ao contrário, a inteligência no trabalho, individualizada ou coletivizada, é o que permite a reação à insuficiência dos dispositivos organizacionais e técnicos e que, de certa forma, os torna efetivos, sendo fonte essencial para o desempenho dos sistemas técnicos. O interesse pela compreensão e pela descrição das formas de expressão da inteligência no trabalho se impõe devido a uma grande contradição: o desenho de muitos sistemas técnico-organizacionais tenta negar o papel do homem e do trabalho para evitar o “erro humano” ou impedir os “atos inseguros”.

Na continuidade de seus estudos, Wisner (1995) busca fortalecer o referencial teórico da AET a partir da reflexão sobre os construtos da Antropologia Cognitiva, inscrevendo-a dentro do paradigma da “cognição situada”. Wisner (1995) mostra que o trabalho não é pura execução, mas construção permanente de problemas devido à grande variabilidade do funcionamento dos sistemas e ao surgimento de novas situações. Não há, no entanto, separação entre mente e corpo, pois, de modo geral, “alguns comportamentos no trabalho não podem ser explicados sem se considerar o estado funcional do operador (falta de sono, fadiga) e seu sofrimento no trabalho (dores músculo-esqueléticas, por exemplo) ou seus temores (acidentes, dentre outros)”. (p. 1547)

Interessado pelos problemas dos processos de transferência tecnológica para países de culturas diferentes, A. Wisner desenvolve a Antropotecnologia a partir da orientação de várias pesquisas de estudantes estrangeiros (Wisner, 1997). Seguindo premissa próxima à da Ergonomia, mas em escala maior, o objetivo é influenciar os determinantes da transferência tecnológica e, assim, ajudar o desenvolvimento econômico desses países. Pôde, assim, demonstrar que o insucesso dos processos de transferência não está associado à “falta de competências” dos compradores da tecnologia, mas relacionado, sobretudo, à insuficiência no processo de transferência tecnológica, que não considera aspectos geográficos, culturais, climáticos, dentre outros.

Pode-se dizer, assim, que a atividade científica de A. Wisner caracterizou-se pelo inconformismo ante os modelos reduzidos do homem e de seu comportamento no trabalho, da relação saúde-trabalho e da análise de acidentes (Wisner, 1993). A AET é de fato metodologia que propicia descrições do trabalho mais amplas e, portanto, mais operantes para sua transformação. No plano institucional, Wisner é um dos grandes responsáveis pela formação da comunidade profissional dos ergonomistas franceses e pelo reconhecimento da Ergonomia pela comunidade científica francesa. Formou vários professores e pesquisadores, franceses e de diversos países, entre os quais muitos brasileiros.

2) Análise Ergonômica do Trabalho e sua institucionalização no Brasil:

O desenvolvimento da AET no Brasil deve-se aos esforços de vários pesquisadores e professores brasileiros formados pela escola do Professor A. Wisner.

Atualmente, a AET é ensinada e fundamenta a pesquisa em várias universidades brasileiras (Universidade de Brasília, Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Minas Gerais,  Universidade Federal de São Carlos, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, dentre outras), em diferentes departamentos e faculdades (Engenharia de Produção, Psicologia, Medicina, Saúde Pública, Desenho Industrial, dentre outros) e em instituições de pesquisa (por exemplo, FUNDACENTRO).

Além disso, a AET, por estar prescrita na Norma Regulamentadora 17, inserida na legislação brasileira sobre Saúde e Segurança dos Trabalhadores, pode ser utilizada para a transformação de grande número de situações de trabalho no Brasil. Se por muitos anos sua aplicação foi restrita, assistimos nos últimos anos ao grande esforço do Ministério do Trabalho e Emprego para viabilizá-la por meio da formação de muitos auditores fiscais do trabalho e até pela criação da Comissão Nacional de Ergonomia, cuja atribuição é auxiliar o Ministério na elaboração de políticas no campo da Ergonomia, em particular, visando ao enfrentamento das situações de trabalho geradoras de Lesões por Esforços Repetitivos ou de Distúrbios Ósteo-Musculares Relacionados ao Trabalho (LER/DORT).


Fonte: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 29 (109): 7-10, 2004.
Edição completa: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/RBSO_109.pdf

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